terça-feira, 24 de abril de 2018

Lula e o rizoma da maldade


Vamos direto ao ponto: o judiciário não condenou Lula; resolveu impor ao ex-presidente a pena de degredo. O processo judicial e a situação prisional de Lula comprovam que não vivemos num estado democrático e de direito.
Mais que isso: o insucesso nas tentativas de extirpá-lo do processo e da disputa eleitoral, primeiro tentando desmoralizá-lo - via perseguição midiática -, depois, aprisionando-o; a impossibilidade de eliminá-lo, dado sua liderança política nacional e seu prestígio e reconhecimento internacional, levou alguns de seus algozes a lançarem mão da mais perversa das ações: isolá-lo numa solitária (maquiada de "cela individual"), impondo-lhe, na sequência, inúmeras restrições de visita.
Para um homem forjado e acostumado com intenso e ininterrupto contato com as pessoas, nada mais cruel e perverso que o isolamento, à força, do convívio social e, mais que isso, do mínimo convívio com seus amigos e correligionários.
Querem, à fórceps - como se fosse um animal capturado, domado e isolado -,  transformá-lo num louco. Depois, desmoralizá-lo publicamente; inabilitá-lo politicamente; torná-lo um lixo humano.
O sucesso de Lula junto ao povo mais simples que não o abandona faz com que sua pena seja a mais perversa e cruel. Portanto, não basta prendê-lo; é preciso desumanizá-lo.
Para Lula, resta apenas o convívio com seus algozes. Algo demasiadamente desumano e desproporcional. Isso não é justiça; é pura perversidade.
É preciso que o mundo inteiro saiba: além de preso político, Lula está sendo vítima de cruel e nefasta tortura psicológica e, nessa condição, sofre de atroz e repugnante violação de diretos humanos, própria de estados de exceção dirigidos por autoridades e poderes corrompidos.
Todos os humanistas, independentemente de filiação partidária e ideológica, mas que defendem os princípios elementares da dignidade humana precisam se levantar e se rebelar contra o totalitarismo togado que está a perpetrar as mais graves violações aos direitos de Lula. Até mesmo contra o mais bárbaro criminoso seria inaceitável essas condições.
Alguma dosimetria no acesso à prisão seria razoável. Porém, qualquer cidadão mais atento já percebeu (apesar das mentiras midiáticas a esconderem os fatos): o que se faz deliberadamente é isolar e impossibilitar o acesso até mesmo da assistência religiosa a Lula, numa avassaladora violência e arbítrio ao direito humano e constitucional.  Aliás, há muito, alguns segmentos da justiça mandaram às favas a Constituição. Operam como um estado paralelo: uma corporação de vaidades que se postam acima do bem e do mal.
Pior que um estado sem rumo (dado a flagrante decadência e corrupção dos três poderes, reféns do rentismo e capturados pelo colonialismo entreguista), é um estado subjugado por personagens eivadas de ódio de classe e repletas dos mais primitivos instintos humanos, a operarem na máquina estatal; portanto, exercendo o poder.
Nesse sentido, Lula é a vítima mais evidente desse estado degenerado e degenerador; mas todos nós, mais cedo ou mais tarde, podemos experimentar as garras de uma justiça de exceção e de seus capatazes.
O rizoma da maldade que sustenta e mantém estruturada uma sociedade marcada pela abissal desigualdade, pela justiça seletiva e pelo cinismo de parte das elites (política, econômica, religiosa, acadêmica, social) de mentalidade escravocrata abateu-se, com descomunal força, sobre Lula com o intento de apagar tudo o que ele representa.
Se a violência estrutural que sempre atingiu o andar de baixo ainda não nos sensibilizou, que a situação absurda imposta a Lula, tratado como um degredado, acenda as luzes das consciências adormecidas e acomodadas: o ovo da serpente do fascismo continua a eclodir; a esparramar inúmeros filhotes.

terça-feira, 10 de abril de 2018

Carta aberta aos bispos brasileiros



Carta aberta aos bispos brasileiros,
por ocasião da 56ª Assembleia Geral da CNBB[1]

Senhores bispos,

Mais uma vez a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) se reúne em assembleia para discutir os rumos da Igreja Católica no Brasil. 

A CNBB nasceu da inspiração de Dom Hélder, o “santo rebelde”. E Dom Helder se tornou referência ética e profética para os cristãos porque sempre foi um discípulo que tinha lado: o lado dos pobres, dos excluídos, dos marginalizados, dos sem voz e sem vez. Optou por seguir, radicalmente, Jesus de Nazaré - que nunca deixou de afirmar com gestos, palavras, ações e testemunhos que o Deus da vida é do Deus dos pobres e dos sofredores.

Neste ano do laicato, a CNBB está a insistir no protagonismo dos leigos. Pois muito bem! Estou aqui para incitá-los a um debate e uma reflexão sobre a vida (e a morte) dos brasileiros e o papel da Igreja Católica no momento atual do nosso país.

Num país marcado pela secular e avassaladora desigualdade social[2], pela violência estrutural[3] e pela injustiça[4], a impossibilitar condições de vida com dignidade a milhões de brasileiros[5], o testemunho cristão é um imperativo ético, um dever profético e uma atitude de fé.

Nos últimos anos assistimos em nosso país ao recrudescimento de disputas reais e simbólicas que redundam num quadro de deterioração sem precedentes de conquistas sociais e políticas dos brasileiros. Como se não bastasse tão grandiosa desventura, um clima de ódio e de violências se espraiam no país.

A CNBB já se manifestou algumas vezes sobre alguns desses temas[6]. Não obstante, a coalizão governista toca uma avassaladora política ultraliberal e continua a empreitada de privatização e esfacelamento do estado e das políticas sociais.

Por outro lado, há um vertiginoso crescimento de grupos religiosos ultraconservadores, inclusive dentro do espectro do catolicismo, colonizando os poderes públicos e usando de estratégias violentas para a criminalização dos mais pobres, dos defensores dos direitos humanos, dos movimentos sociais organizados; enfim, de segmentos que lutam por uma sociedade mais justa, igualitária, fraterna e inclusiva.

No quadro político, a deterioração dos três poderes da República sinaliza a ausência de qualquer perspectiva para saídas democráticas e constitucionais à crise institucional que se instalou no país desde as eleições de 2014, agravando-se com o impedimento da ex-presidente Dilma Rousseff, sem comprovação de crime de responsabilidade, e a controversa prisão do ex-presidente Lula, marcada por um processo caracterizado pela politização judicial[7]. Esses fenômenos não podem ser naturalizados e refletem os caminhos tortuosos da vida política nacional.

A imprensa, dominada por oligopólios econômicos, atua em uníssono como um partido político, a impor uma “verdade única” e a insuflar a radicalização dos discursos de ódio. As redes sociais se transformam num patíbulo.

O desrespeito à ordem constitucional levou membros das Forças Armadas, na ativa, a desrespeitarem flagrantemente a lei[8] , manifestando publicamente suas posições políticas e partidárias.

O Supremo Tribunal Federal se transformou num campo de batalhas, exibidas em rede nacional, para o constrangimento geral.

O panorama eleitoral é dos mais complexos: projeções especializadas dão conta que é alta a tendência, nas eleições deste ano, de manutenção dos atuais ocupantes do Congresso Nacional[9], caracterizado pelo conservadorismo[10] e por implementar uma série de reformas que maculam a Constituição Federal de 1988.

Sob outra perspectiva, há uma clara estratégia de empoderamento político-partidário de muitas igrejas evangélicas pentecostais e neopentecostais e partidos ligados a elas para ampliarem suas bancadas na Câmara e no Senado a partir de 2019.[11]

O quadro torna-se ainda mais complexo à medida que está cada vez mais incerta a realização das eleições, previstas para outubro deste ano.

Nesse cenário, a tendência de um acirramento das disputas parece evidente. Além do escandaloso contingente de homicídios no país (cerca de 60 mil por ano, vitimando principalmente pobres, negros e jovens), o número de ativistas executados nos últimos cinco anos já chega a 194, sendo 20 apenas no Rio, segundo levantamento do jornal “O Estado de São Paulo”. A União de Vereadores do Brasil informa que o número de vereadores e de prefeitos mortos entre 2017 e 2018 já chega a 23. Estão de volta os crimes políticos, a nos recordarem, entre outros acontecimentos, os tempos sombrios da Ditadura.

Como é sabido, num país historicamente marcado pela aniquilação das vozes que discordam do establishment, certamente serão os pobres, os movimentos sociais e os grupos vulneráveis que padecerão da violência estatal à medida que se aprofundam as crises política, econômica e institucional.

Por isso, penso que a CNBB, tendo em vista sua história na luta pelas liberdades democráticas e pela justiça social, é convidada a se posicionar claramente sobre a situação política atual do nosso país, a indicar à sociedade brasileira caminhos de superação da crise.
Está em jogo, no atual momento, o futuro da nossa Nação. Muitos podem argumentar que a pior atitude da Igreja, com vista a agradar gregos e troianos, seria a omissão. É fato que uma atitude profética sempre implicará em riscos.

O medo e a paralisia que se abateram sobre muitas lideranças sociais e políticas - e que trarão consequências perversas à vida do nosso povo – poderiam ser enfrentados com corajosa atitude profética dessa Conferência, nesse momento crucial da vida nacional.

Não poderia ser diferente. Termino essa modesta missiva com um trecho da última exortação apostólica do Papa Francisco: “Não podemos propor-nos um ideal de santidade que ignore a injustiça deste mundo, onde alguns festejam, gastam folgadamente e reduzem a sua vida às novidades do consumo, ao mesmo tempo em que outros se limitam a olhar de fora enquanto a sua vida passa e termina miseravelmente. ” (Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate, 101).

Robson Sávio Reis Souza é assessor de movimentos sociais e eclesiais; é professor universitário, com doutorado em Ciências Sociais.


[1] De 11 a 20 de abril de 2018, em Aparecida (SP).
[2] Relatório de janeiro de 2018 da ONG Oxfam aponta que cinco bilionários em nosso país têm a mesma riqueza que a metade mais pobre dos brasileiros e os 5% mais ricos detém a mesma fatia de renda dos demais 95% da população.
[3] CNBB. Texto-base da Campanha da Fraternidade de 2018: “A violência como sistema no Brasil”, pp 24-29.
[4] CNBB. Texto-base da Campanha da Fraternidade de 2018: “A ineficiência do aparato judicial”, pp 38-40.
[5] “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10).
[6] Nota sobre o momento nacional, de 21 abr. 2015; Nota sobre a PEC 241, de 27 out. 2016; Nota sobre a PEC 287/2016 (Reforma da Previdência), de 23 mar. 2017; Nota pública contrária ao projeto de reforma trabalhista, de 10 jul. 2017 e Nota sobre o atual momento político, de 26 out. 2017.
[7] O jurista italiano Luigi Ferrajoli, um dos expoentes das teorias do garantismo constitucional, escreveu sobre o tema. Confira no link a seguir: [https://rodrigocarelli.org/2018/04/07/uma-agressao-judiciaria-a-democracia-luigi-ferrajoli]. O livro “Comentários a uma Sentença Anunciada: o Processo Lula”, reúne 103 artigos, de 122 juristas, que apontam problemas e equívocos na sentença do Juiz Sergio Moro, que condenou o ex-presidente Lula no caso do tríplex.
[8] O decreto 4.346, de 26 de agosto de 2002, que regula o comportamento de militares das Forças Armadas Brasileiras não permite a manifestação pública, sem uma autorização prévia, sobre política. Trata-se do item 57 do anexo sobre a relação de transgressões: "Manifestar-se, publicamente, o militar da ativa, sem que esteja autorizado, a respeito de assuntos de natureza político-partidária." O texto foi assinado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso.
[9] “Câmara deverá ter um dos maiores índices de reeleição das últimas décadas, projeta Diap”. Veja em: [http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/camara-deve-ter-um-dos-maiores-indices-de-reeleicao-das-ultimas-decadas-projeta-diap].
[10] Segundo reportagem do jornal “O Estado de São Paulo”, de 06 de outubro de 2014, “o aumento de militares, religiosos, ruralistas e outros segmentos mais identificados com o conservadorismo refletem, segundo o diretor do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), Antônio Augusto Queiroz, [que] o novo Congresso é, seguramente, o mais conservador do período pós-1964".
[11] “Evangélicos querem eleger 150 deputados e 15 senadores”. Fonte: [http://www.valor.com.br/politica/5257923/evangelicos-querem-eleger-150-deputados-e-15-senadores-este-ano]. Veja, também: “Evangélicos querem Crivella presidente e bancada de um terço da Câmara em 2018”. Fonte: [https://jornalggn.com.br/noticia/evangelicos-querem-crivella-presidente-e-bancada-de-um-terco-da-camara-em-2018/].


sábado, 7 de abril de 2018

O golpe e sua irmã siamesa: a justiça da Casa Grande



A votação do pedido do habeas corpus do ex-presidente Lula no Supremo e a violenta ação de  Sérgio Moro ao mandar prendê-lo de imediato, atropelando mais uma vez o devido processo legal, foram mais dois episódios a comprovarem que o judiciário brasileiro impôs-se como o principal agente político no país, além de se constituir como o esteio mais potente a sustentar e manter a ruptura institucional havida em 2016, quando a ex-presidenta Dilma Rousseff foi apeada do cargo sem crime de responsabilidade.

Que fique claro de início: estamos a produzir, aqui, uma crítica ao sistema judiciário; uma avaliação institucional. Reconhecemos que há operadores nas instituições desse sistema que são  republicanos e democratas.

Em relação ao julgamento do habeas corpus de Lula no STF, o cenário, os atores e o contexto denunciavam, a olhos nus, uma tragicomédia deprimente, apesar das máscaras de imparcialidade e das falas herméticas, recheadas de enfadonha retórica bacharelesca. Em rede nacional foram desnudados os estratagemas urdidos nos bastidores, com vistas ao posicionamento de um amontoado de vaidades pessoais e não de uma Corte constitucional que deveria estar preocupada e comprometida com saídas razoáveis e justas para a gravidade do momento político atual. Não se tratou da análise de um instrumento basilar da cidadania, o habeas corpus, mas da inviabilidade eleitoral de um ex-presidente que, numa democracia de fato e não de fachada, deveria ser avaliado pelas urnas, haja vista a fragilidade e as controvérsias de sua condenação pelo juiz curitibano. Nesse sentido, o julgamento do Supremo se constituiu em mais uma peça de um jogo tramado pelas elites nacionais, promotoras da ruptura institucional em 2016, e abençoado, desde o primeiro momento, por  setores do sistema de justiça para impedir que a vontade popular seja considerada nessa quadra da história de um país marcado por golpes e tramoias do andar de cima.

Sei que parte dos pensadores e lideranças, inclusive das esquerdas, temem questionar o modus operandi da justiça brasileira. Numa sociedade que se sustenta por privilégios de classe e não pela igualdade de direitos, é sempre muito arriscado questionar o status quo de togados e do MP. Afinal, em algum momento, todos podem necessitar das salvaguardas pretorianas do sistema judicial e, nesse sentido, é melhor procurar outros argumentos para nomear os atores que articularam e mantém o golpe.

Porém, desde 2015, já apontava a onipotência da toga na judicialização da política, alertando sobre o perigo de um poder autocrático, como o Judiciário, definir os rumos da vida social, política e institucional. Ponderava que não podemos esquecer que o Judiciário é o poder menos transparente, menos democrático, mais aristocrático e mais distante da “vida como ela é”, como dizia Nelson Rodrigues. E advertia: enganam-se aqueles que rejubilam com arroubos autoritários do Judiciário. A quem interessa que um poder tão distante das demandas e anseios do povo possa se sobrepor às demais instituições republicanas?

No início de 2016, escrevi um texto que chamava a atenção para a burocracia estatal hermética dos operadores do direito. Estruturada durante a ditadura militar, foi a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 que se consolidou, paulatinamente, uma casta jurídica no Brasil, formada por parte significativa de juízes, promotores, tabeliães, delegados de polícia, outros operadores do direito e bancas de advogados associados a essas estruturas de poder. Entre os operadores de direito, juízes e membros do Ministério Público e seus serviçais formam quase que um estado paralelo, porque conseguiram, de variadas formas, legalizar uma série de regalias e privilégios, vedadas aos mortais comuns, os demais cidadãos. Recebem salários integrais e vitalícios; aposentadorias nababescas - inclusive acima do teto constitucional (em evidente afronta à Constituição) - e transmissíveis a herdeiros; variados tipos de penduricalhos absorvidos como remuneração (auxílio moradia, terno, mudança, transporte); bolsas para estudos, inclusive de seus rebentos etc. Uma farra, sem controle e pudor, com o dinheiro público.

Lembrava que o distanciamento do judiciário para com a sociedade, a sua propensão ao autoritarismo e o seu elitismo é resultante da formação da sociedade brasileira. A origem do judiciário brasileiro é patrimonialista, idealizado e estruturado pelos de “cima” para e em defesa dos interesses das classes privilegiadas. Essa caracterização é claramente evidenciada nas dificuldades de acesso à justiça pelos mais pobres e nas sentenças condenatórias que punem largamente os pobres e inocenta os ricos. Quem conhece o perfil dos presos brasileiros sabe da seletividade, ineficiência, parcialidade e do grau de injustiça da justiça brasileira.

Em março de 2016, com o aprofundamento da crise política, sugeri: imagine um estado que se autointitula democrático e de direito, onde um promotor ou juiz, imbuído de paranoia higienista, xenofóbica, racista ou messiânica resolve, a seu bel-prazer, transformar sua caneta numa forquilha. Nesse país, as instâncias superiores do judiciário (que poderiam controlar arroubos autoritários) estão covardemente amedrontadas e imobilizadas pelo tribunal supremo midiático e reféns da opinião publicada.

Noutro post, ainda em março de 2016, apontava as instituições articuladoras de um golpe formado pelos mesmos atores que tramaram o golpe de 1964, entre os quais uma casta jurídica que na ditadura se fortaleceu e, paradoxalmente, se consolidou após os poderes dados a esse grupo pela Constituição Federal de 1988 (parte do judiciário, MP, polícias e advogados de banca).

Como se sabe, depois do fajuto processo de impeachment na Câmara dos Deputados, muitos confiavam numa reversão da empreitada golpista pelo Supremo Tribunal Federal. Ponderava à época: é bom lembrar de 1964 e não alimentar muitas ilusões. Quanta inocência pensar em isonomia e independência da justiça brasileira! Há uma casta jurídica consolidada no país que não abre mão de privilégios e tem no sistema de justiça as salvaguardas para se manter no poder. Por isso, o STF facilmente se curvará aos ditames dos varões de Plutarco aninhados na Câmara dos Deputados.

Em abril de 2016, argumentei que a aliança espúria e virulenta entre setores do Ministério Público, da Polícia Federal e do Judiciário com a imprensa, desde o chamado “Mensalão” e agora na “Operação Lava Jato” - tramando jogadas midiáticas -, constituía num perigo inominável não somente para a ordem democrática, mas também para todos os cidadãos e as demais instituições sociais. Quando a acusação em doses cavalares e à revelia do devido processo legal é transformada em evidências de culpa, chantagem e difusão do medo, mesmo não havendo investigações suficientes, provas cabais e apresentação do contraditório; quando a justiça não age de forma isonômica; quando o objetivo é destruir carreiras e promover caça às bruxas flerta-se com um estado totalitário.

Noutro post, no mesmo mês, afirmava não confiar numa reversão do golpe parlamentar por parte do Poder Judiciário. Salvo exceções e espasmos, a justiça em nosso país sempre esteve a serviço da Casa Grande. Quem conhece o sistema de justiça criminal, por exemplo, sabe disso: estado penal para os pobres; estado constitucional para os ricos. No plano político, o fato de o Supremo nunca ter revisado a lei de anistia autoriza, simbolicamente e na prática, a barbárie praticada cotidianamente por agentes do estado. Falar do sistema de justiça significa falar de uma casta jurídica conservadora e elitista infiltrada em diferentes agências, órgãos e poderes do Estado.

À época, voltava a apontar como espúria a relação entre a mídia e o judiciário: instituições que não emergem da vontade popular, não têm controles democráticos e nem sempre têm compromissos com a democracia. E dizia ser nesse cenário que a crescente politização da justiça, determinada e glamourizada em boa medida pela ação da mídia, no Brasil, se constitui num risco à democracia.

Advertia: a onipotência das togas, numa democracia, é indesejável. Os juízes têm que ter limites. Não podemos concordar que uma juristocracia determine os rumos da vida republicana, em detrimento da Constituição. Juízes, promotores, delegados, policiais não são donos da verdade e não estão acima das leis.

Chamo de juristocracia um regime político onde qualquer juiz ou promotor, de qualquer instância, pode determinar o que bem entender, se utilizando de mecanismos judiciais casuísticos para impor à sociedade, à um indivíduo ou instituição a sua percepção pessoal, servindo a uma ideologia, uma classe ou grupo político em prejuízo da ética, da legalidade ou dos anseios populares.

Com a consumação do impeachment fajuto, em maio de 2016, apontei que se o STF desejasse um mínimo de moralidade na República, deveria ter determinado não somente o afastamento de Eduardo Cunha do seu mandato e da presidência da Câmara, mas também anulado todos os seus atos desde o recebimento da denúncia da PGR, em dezembro de 2015. E, nesses atos, estaria inclusa a patética sessão da Câmara de 17 de abril (de 2016) quando foi determinado o prosseguimento do processo de impeachment contra Dilma Rousseff. Como dizia Ruy Barbosa "a justiça atrasada não é justiça; senão injustiça qualificada e manifesta." (IN: "Oração aos Moços", 1921).

Em julho de 2016 voltei ao tema argumentando que a justiça tratou de pavimentar os caminhos para a empreitada golpista. A mais alta corte assistiu impávida um bandido comandar a abertura do processo de impeachment; e acovardou-se quando um juiz de primeira instância violentou a Constituição permitindo a exibição, em rede nacional, de um grampo ilegal, a motivar a condenação tácita e pública da presidenta.

Em “O golpe das corporações” considerava que a grande imprensa escondia propositadamente a justiça de exceção: por exemplo, o TRF4 decidiu, em 22 de setembro de 2016 que a operação "lava jato" não precisaria seguir as regras dos processos comuns. Em outras palavras, às favas o estado de direito: a República de Curitiba está acima da lei. E emendava: a lava-jato é uma operação judicial-policial cuja estrela-guia, segundo denúncias, foi treinada nos Estados Unidos e cujo objetivo único, nos últimos tempos, é destruir um símbolo popular. Essa operação, disfarçada de combate à corrupção, propiciou a assunção de um governo contra o povo: em consórcio com a mídia, a lava-jato pautou, nos últimos meses, a política institucional, principalmente no Congresso, através das manchetes seletivas produzidas todos os finais de semana (pelo núcleo jurídico da lava-jato). Objetivo: desestabilizar o governo que já enfrentava dura crise econômica e apear Dilma do poder a qualquer custo. Enquanto um segmento da justiça parece tão proativo a ponto de suplantar a própria legalidade, observamos o sistema de justiça mais amplo leniente, omisso e cheio de vícios quando se trata de crimes praticados pelas elites tradicionais. É que, no fundo, a justiça opera, também, para que os seus interesses corporativos prevaleçam sobre os interesses públicos e populares. As negociações para o aumento do Judiciário nos momentos mais nevrálgicos da crise política, à época, explicitaram essa faceta do golpe.

Com o título “juristocracia que respaldou o golpe quer dar um novo golpe”, de novembro de 2016, lembrava que juízes, promotores e policiais construíram ao longo do tempo uma "linhagem de cidadãos excepcionais". Vivem num "universo paralelo", onde não se submetem a nenhuma forma de controle social e político; nem prestação de contas à sociedade. Edificaram tal "império" às custas da chantagem política e da conivência, omissão e parceria com os grupos que têm interesses numa justiça enviesada.  Seus prepostos e defensores nos outros poderes, na mídia e os donos do capital (que são os beneficiários diretos da seletividade do sistema de justiça), mantém esse edifício aparentemente impoluto. Fazem-nos crer que o judiciário é isento, justo e composto por homens e mulheres acima do bem e do mal, essencialmente republicanos e democratas. Assim, todos esses segmentos ganham com uma justiça que age para garantir os direitos constitucionais para os ricos e os poderosos e os aplicar as sanções penais para os pobres ou aqueles que eventualmente são eleitos como bodes expiatórios pelo sistema (não somente de justiça, mas também o sistema econômico).

A chamada "carreira jurídica do estado" chega ao poder por meio de concurso, de caráter meramente técnico, sem nenhuma outra exigência ou compromisso democrático ou republicano. Essa classe de privilegiados, sempre com exceções, por óbvio, opera tão marginalmente à lei - que é fruto dos interesses dos segmentos no poder - que um magistrado quando comete crimes geralmente é punido com aposentadoria compulsória. No Brasil, desde sempre, o segmento judiciário é um estado paralelo. O professor e catedrático Fábio Konder Comparato, de ilibada índole, escreveu célebre texto sobre o poder judiciário no Brasil, disponível no site do IHU-on line. Nessa obra fica patente que o judiciário "sempre foi e é submisso às elites, corrupto em sua essência e comprometido secularmente com a injustiça".

Nos momentos de crise, os segmentos da carreira jurídica de estado atuam para consolidar seu poderio. Uma das grandes investidas nesse sentido se deu nas manifestações de 2013. Promotores, aproveitando da crítica ácida ao sistema político à época, conseguiram "vender" a ideia que estavam sendo perseguidos e enterraram a PEC 37, ampliando ainda mais seus poderes. Todos devem lembrar dessa história. Na sequência, o STF com a aplicação do "domínio do fato" institucionalizou um contorno à Constituição. A partir de então, nova cruzada foi implementada para a desmoralização e criminalização da política e o assoberbamento da juristocracia, com ações coordenadas, envolvendo juízes, promotores e policiais.

Em janeiro de 2017, comentando um texto de Eugênio Aragão, então subprocurador geral da República, me chamou à atenção a confirmação, cada vez mais cabal, que o STF não somente criou todas as condições para o golpe como, também, sacramentou a vilania dos bandoleiros da nossa democracia; dos rapineiros de 54 milhões de votos. São muitos os fatos e evidências que indicavam, à época, que os magistrados da mais alta corte da justiça (aqueles que deveriam ser os guardiões da Constituição), foram cúmplices, mais uma vez, de um golpe de estado, como já ocorrera antes, em 1964.

E concluía: temos insistido sobre o papel estratégico que a juristocracia tupiniquim desempenhou no golpe de estado. Entre as muitas reformas que precisam ser feitas para colocar o Brasil no patamar de uma república de fato, uma delas, sem dúvida, é a do sistema de justiça.

Ainda em janeiro de 2017, apontava que as tramoias na eleição das mesas diretoras da Câmara e do Senado, quando se montou nova estratégia parlamentar para dar sustentação ao governo golpista, o Supremo, mais uma vez, mostrava sua colaboração e respaldo na consolidação da ruptura democrática, à medida que deixou de se posicionar frente às ilegalidades.

Em “A justiça e a ruptura democrática”, de março de 2017, falava do papel estratégico desempenhado por promotores e juízes na consolidação da ruptura democrática, ou seja, do golpe parlamentar de 2016. Na ocasião, apontava que esse processo de centralidade do judiciário iniciou com a judicialização da política (no mensalão), derivando na politização da justiça (nas posturas e decisões de Sérgio Moro, Rodrigo Janot e Gilmar Mendes, na lavajato) e, culminava com a partidarização da justiça (com a nomeação de Moraes para o STF). Falava-se, inclusive que a presidente do Supremo estaria sendo preparada para chefiar o executivo, num novo golpe dentro do golpe.

Lembremos que esse processo acontecia simultaneamente à ampla campanha de criminalização da política, notadamente dos partidos e seus quadros. Ou seja, à medida que todos os políticos e partidos eram lançados na fogueira, o poder judiciário ia tendo sua musculatura reforçada. Sintomático, também, o fato de, justamente quando o voto popular e de segmentos da classe média passou a eleger políticos e partidos de esquerda no nível central, os grupos de direita, com apoio e metodologia norteamericana (já testados em Honduras e Paraguai), se articularam para surrupiar do povo o direito de escolher seus governantes e recolocaram as elites jurídicas e judiciárias no centro da vida política nacional.

E denunciava que já naquele momento era vergonhosa a relação incestuosa que propicia uma estabilidade política baseada na chantagem entre o Judiciário (leia-se STF, PGR e lavajato) – que controla processos, delações e inquéritos -, o Parlamento e o Executivo, estes últimos atolados na corrupção.

Entre inúmeros exemplos possíveis desse protagonismo exacerbado da justiça, apontávamos algumas das ações do juiz Sérgio Moro que, mesmo sendo juiz, nunca teve nenhum escrúpulo de explicitar sua afeição e proteção ao PSDB (com o compadrio de outros colegas no Supremo). A cena entre o juiz e Aécio Neves durante uma premiação da mídia causou indignação até mesmo de cidadãos acostumados a relativizar a promiscuidade entre políticos e magistrados. À época circulava informação segundo a qual Moro teria ido para os Estados Unidos aprender com os agentes da CIA e FBI como, através do sistema de justiça, dar respaldo a um golpe gestado no parlamento, com apoio empresarial, midiático e de segmentos conservadores da sociedade. As relações amistosas de cooperação entre a operação lavajato e órgãos norteamericanos, sem o crivo das instâncias definidas para esse tipo de colaboração, colocavam em xeque a soberania nacional e isso não era objeto de espanto.

E concluía: há mais de três anos, em parceria com a PGR, o TRF4 e Mendes, o togado curitibano tornou uma espécie de inquisidor oficial da república. Persegue uns (Lula, o PT, etc.); protege outros. Ao mesmo tempo, Moro recebe prêmios e tratamento especial da TV globo. Assim, foi elevado à categoria de herói nacional pelas elites; e é considerado pelos ultraliberais o exterminador do PT. É convidado para palestras por grupos de direita e think tanks no Brasil e no exterior e surfa garboso na onda conservadora e reacionária que invade violentamente o Brasil e o mundo.

Voltando ao Supremo, para finalizar: o julgamento do habeas corpus do ex-presidente e as decisões dele advindas com a decretação da prisão de Lula pelo todo-poderoso juiz curitibano, mostram que o poder judiciário decidiu, definitivamente, se consolidar como o principal agente político, seja interferindo no processo eleitoral ou atuando na chantagem a todos os demais agentes políticos e poderes, como vem ocorrendo nos últimos anos.


sexta-feira, 6 de abril de 2018

O julgamento do habeas corpus de Lula: hipocrisia e dissimulação

Publico, a seguir, entrevista que concedi ao IHU on line comentando o julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula e os impactos e perspectivas políticas depois desse deprimente espetáculo justiceiro:
Foto: Internet

Segue, na íntegra:
- Qual sua avaliação do julgamento de habeas corpus do ex-presidente Lula pelo STF?
Dado que Lula foi condenado sem qualquer prova digna desse nome, o julgamento de seu habeas corpus se transformou num misto de hipocrisia e dissimulação. O cenário, os atores e o contexto do julgamento denunciavam, a olhos nus, um espetáculo deprimente, apesar das máscaras de imparcialidade e das falas herméticas, recheadas de enfadonha retórica bacharelesca. Em rede nacional foram desnudados os estratagemas urdidos nos bastidores, com vistas ao posicionamento de um amontoado de vaidades pessoais e não de uma Corte constitucional preocupada e comprometida com saídas razoáveis e justas para a gravidade do momento político atual. Não se tratou da análise de um instrumento basilar da cidadania, o habeas corpus, mas da inviabilidade eleitoral de um ex-presidente que, numa democracia de fato e não de fachada, deveria ser avaliado pelas urnas, haja vista a fragilidade e as controvérsias de sua condenação. Nesse sentido, o julgamento do Supremo se constituiu em mais uma peça de um jogo tramado pelas elites nacionais, promotoras da ruptura institucional em 2016, e abençoado, desde o primeiro momento, por amplos setores do sistema de justiça para impedir que a vontade popular seja considerada nessa quadra da história de um país marcado por golpes e tramoias do andar de cima. O circo se completou com a visível tibieza de uma presidente do Supremo oportunista e ardilosa, que deixou de seguir a ordem natural e cronológica das ações que aguardavam decisão do tribunal, julgando o caso particular antes do geral e, por isso, foi desmascarada por um dos seus consortes.  Acusada e acuada de armar uma cilada, emudeceu; uma atitude pusilânime. As pressões da mídia empresarial, da caserna twiteira e dos penitentes funcionários públicos que fizeram jejum (utilizando-se da mais estúpida alienação e manipulação religiosa) contribuíram para compor o espetáculo grotesco e farsesco. O que se viu foi um grupo amedrontado por pressões, contra as quais apenas um ministro se manifestou. Por fim, o voto de Rosa Weber foi o cúmulo da hipocrisia, a mostrar que princípios foram substituídos por coleguismo corporativo. A ministra se comportou como uma colegial que se chafurda na lama para ser solidária às amigas. Ou seja, reconheceu a inconstitucionalidade, mas decidiu ficar com “a jurisprudência do tribunal”. Uma manifestação simplesmente patética. Enfim, o julgamento de ontem e as decisões dele advindas com a decretação da prisão de Lula mostram que o poder judiciário decidiu, definitivamente, ser o principal agente político, seja interferindo no processo eleitoral ou na chantagem a todos os demais agentes políticos e poderes, como vem ocorrendo nos últimos anos.
- Qual será o impacto político da condenação do ex-presidente Lula?
Muito provavelmente a situação política tende a se agravar e radicalizar (ainda mais). Primeiramente, porque a prisão do ex-presidente não impactará, necessariamente, na perda do seu capital político, haja vista sua capacidade de resiliência comprovada durante todo o processo que se estende desde o chamado “mensalão”. Nesse caso, Lula poderá se transformar, aos olhos de boa parte dos brasileiros e da comunidade internacional, num preso político com grande capacidade de mobilização sociopolítica, a derivar num recrudescimento das disputas de modo a tornar imprevisível o futuro do país. E, na impossibilidade de se candidatar, terá potencial de transferência de voto a confrontar a aliança da direita e dos setores ultraliberais que disputam, desorientados e sem coesão, os despojos do governo Temer. Ou seja, se os patíbulos midiático e justiceiro não forem suficientes para liquidar o simbolismo de figura de Lula, provavelmente não será sua prisão que o defenestrará do protagonismo do processo político e eleitoral.
- Quais são as perspectivas políticas daqui para frente, considerando o resultado do julgamento?

Caso aconteçam eleições, boa parte da população - desestimulada à participação eleitoral devido à criminalização da política, ao recrudescimento das disputas reais e simbólicas e à provável ausência de Lula -, deixará de participar do próximo pleito. Há pesquisas considerando esse cenário que apontam contingentes próximos de 50% nos índices de abstenções, votos brancos e nulos. Isso liquidará de vez a legitimidade de qualquer candidato eleito, a inviabilizar a construção de um pacto nacional para a superação da agudíssima crise institucional. Ademais, eleições são necessárias, mas insuficientes para garantirem a retomada da democracia. Na ausência de Lula, há um imenso vácuo à ocupação legítima do poder, dado a inexistência de qualquer liderança política capaz de articular uma coalizão a construir saídas democráticas e constitucionais. Nesse sentido, está cada vez mais evidente que o expurgo de Lula do processo eleitoral significa o aprofundamento da ruptura democrática, deixando o país numa encruzilhada perigosa: um governo de togados; de um "salvador da pátria" construído artificialmente pela mídia ou de generais. Nesses casos, o povo continuará fora do processo decisório. Considerando ainda o quadro de abissal desigualdade social, será possível manter uma democracia sem cidadania?
Entrevista originalmente publicada em: http://www.ihu.unisinos.br/577678-tensao-pos-julgamento-do-habeas-de-lula-e-expectativa-para-o-futuro-do-cenario-politico-nacional-entrevistas-especiais-com-adriano-pilatti-roberto-romano-ruda-ricci-ivo-lesbaupin-bruno-lima-rocha-moyses-pinto-neto-e-robson-savio