sábado, 3 de setembro de 2016

Fatiar o impeachment: o velho pacto das elites


Charge: Neltair Rebés Abreu, o 'Santiago' 
Realmente, o sistema político está apodrecido. E os líderes políticos também.

O processo de impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff foi violentíssimo. Um bando, em sua maioria de corruptos e poderosos, tomou de assalto o poder, pisoteando a Constituição e os princípios mais elementares do jogo democrático: respeito às regras e às deliberações populares.

A coalização golpista, um ajuntamento de interesseiros – que doravante se agafanharão para conseguir seus pleitos no presente e no futuro -, como ocorreu em vários momentos da história nacional (1954 e 1064 estão logo ali), não mediu esforços para alcançar seus objetivos: tirar a fórceps a presidenta, interromper um governo de viés mais popular e tentar, com o golpe e numa só tacada, extirpar o PT. Com a empreitada, objetivou-se também sinalizar à sociedade que os velhos-novos coronéis estão de volta, em nome da “lei e da ordem” (deles).

Mais uma vez o processo político foi determinado pelas nossas elites conservadoras, com forte indistinção entre público e o privado e seu desdém às leis, normas e valores republicanos. Elites que insistem em sustentar um caduco sistema político afastado do povo; uma democracia sem demos.

O modus operandi dessas elites é simples e simplório: como não respeitam as normas, consideram o direito apenas na sua formalidade e não operam para o funcionamento das instituições nos moldes republicanos, sempre lhes cabe determinar os rumos da história. Aos cidadãos restam a dependência aos favores pessoais e às clivagens de classe para o acesso aos bens públicos e aos direitos de cidadania. E ponto.

Porém, é imperioso dizer, esse pensamento não é somente das elites da direita tradicional. Grupos de elite da esquerda agem da mesma forma quando no poder. Pensam que a transformação só se opera pelo pacto entre as elites e conspiram quando há iminência de renovação de baixo para cima; apesar do discurso.

Os protestos de 2013 sinalizaram o movimento de insatisfação geral dos brasileiros em relação a um estado que não opera para realização da cidadania de e para todos e todas. Passado aquele momento, todos os políticos tradicionais, de direita e de esquerda, voltaram para os seus gabinetes. E esqueceram que há uma insatisfação latente da sociedade, não somente no Brasil, com esse modelo que “não nos representa”.

Neste sentido, Dilma deve um mea culpa à sociedade. No segundo governo, talvez meio abandonada pelos comensais do poder, ao invés de uma guinada para aumentar sua base popular, a presidenta foi logo tentar as conciliações por cima, inclusive indicando para ministro da Fazenda um preposto de seus algozes.

Pois bem. Incapazes de absorver essa nova gramática social – um clamor por uma nova política lastreada nas demandas populares -, as esquerdas patinaram desde 2013. E, como na política não há espaço para vácuos, os segmentos de direita que se empoderaram na ocasião, capturando uma parte dos “revoltados” on e off line, articularam a mais ampla coalização da história deste país. E todos vimos o resultado nesse processo fajuto de impeachment, um verdadeiro estupro à democracia.

A população, em 2013, pedia mais estado (mais e melhores políticas públicas) e, paradoxalmente, menos de três anos depois tomou de assalto o poder um grupo que fará o oposto: mais e muito mais para o deus-mercado.

Como a história é movimento e disputa contínuos, o processo de impeachment começou a rearticular amplos e diversificados segmentos sociais e as esquerdas no Brasil. Uma nova potência está em construção. A violência do processo conduzido pelas velhacas elites políticas; suas características machistas, misóginas, elitistas, autoritárias; seus principais atores atolados na corrupção e no discurso vazio do moralismo; a participação escancarada da mídia oligopolizada; o dinheiro sujo das empresas sonegadoras; a ação seletiva de juízes, promotores e policiais agindo num estado paralelo dentro do estado democrático... Tudo isso começou a despertar em setores sociais dos mais distintos uma imensa indignação e repulsa. As ruas voltaram a falar.

A violência da destituição da presidenta e a não menos violenta leniência em relação a políticos como Eduardo Cunha escancararam, interna e externamente, o golpe. Criaram-se condições para que a insatisfação latente da população em relação ao carcomido sistema político voltasse a ocupar o centro do debate.

De repente, nos bastidores, mais uma vez, o pacto entre elites operava silencioso. Setores do PT e aliados, coronéis do velho PMDB e membros do judiciário costuraram um acordo de cavalheiros para minimizar a violência do golpe e aplacar a ira dos cidadãos: a cassação do mandato com a preservação dos direitos políticos da presidenta. O tradicional esquema do bate-e-assopra para manter tudo como sempre esteve.

Esse tipo de acordo enfraquece e impede a transição do Brasil para o moderno. Nossos avanços parecem estar sempre fadados a serem graduais, não violentos, conchavados. É sempre uma modernização conservadora, pactuada nos bastidores; conciliadora. Uma revolução passiva. Um jogo político sempre controlado.

Porém, estou convencido que o momento histórico poderá criar condições para superar essa velha marca do processo de transformação social brasileiro.

A pluralidade e a diversidade que emergiram da sociedade nos últimos anos; o gradual protagonismo dos jovens e das mulheres; os novos atores sociais, com suas clivagens identitárias, étnicas e sexuais - que não aceitam a condição de expectadores dos jogos políticos tradicionais - poderão imprimir uma nova gramática à nossa Nação.

Esses grupos, historicamente invisibilizados e excluídos do processo político, conheceram outro mundo; uma outra forma de se produzir e se reconhecer o mundo.  

Espero que esses grupos estejam dispostos a fazer história. E não aceitar, mais uma vez, que o conchavo das elites impeça os avanços substantivos da nossa sociedade.

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